quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Análise do Conto "O Safári Definitivo” de Nadine Gordimer

Nadine Gordimer
Desde muito jovem, a escritora sul-africana Nadine Gordimer demonstrou interesse na luta contra a desigualdade econômica e social que afligia seu país. Filha de um pai refugiado da Rússia czarista e de uma mãe ativista, Gordimer buscou denunciar em suas obras a situação de pobreza e discriminação enfrentada pelos negros na África do Sul. Sofreu duras repressões do governo e entrou para a chamada lista negra de escritores anti-apartheid. Mesmo após o fim do regime de segregação racial, parte de seu trabalho continuava censurado devido a conteúdo considerado “subversivo” e “unilateral”.

Sua participação em manifestações contra o Apartheid ganhou força não somente em suas viagens ao redor do mundo onde foi porta voz dos perseguidos pela repressão política como também, por meio de suas obras que resistiram a censura e promoveram a literatura sul-africana a um patamar internacional. Com mais de 30 livros, Gordimer lutou pela liberdade de expressão para que aqueles que “não tem voz”, pudessem ser ouvidos.

Quando escreveu The Ultimate Safari, Gordimer estava extremamente compadecida pela situação dos refugiados na África do Sul. Moçambique sofreu 14 anos com a Guerra Civil entre as forças do então governo do presidente Samora Machel, e a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO). Além dos ataques indiscriminados aos civis pelos rebeldes, a situação violenta do país se agravou ainda mais pelo colapso econômico, falta de serviços médicos durante anos e a fome que se alastrara por quase todo o território. Ferido e faminto, o povo moçambicano buscou refúgio em países vizinhos e, entre eles, a África do Sul. Em sua obra, Gordimer retrata a história desta comunidade invisível que aos olhos de muitos não pode ser considerada uma comunidade de fato pois, não tem um lugar: os refugiados. Seja pelos horrores da guerra, conflitos religiosos ou econômicos, a África do Sul recebeu centenas destes refugiados que procuravam asilo, emprego e moradia abalando a também caótica situação pelo qual passava o país que os acolheria.

Narrada em primeira pessoa, a história é contada por uma garotinha sem nome de 11 anos. Sabemos que ela é a irmã do meio ao se referir sobre seu irmão mais velho e seu irmão mais novo, ainda muito pequeno. No segundo parágrafo a garotinha descreve o medo que sentiu a noite pois sua mãe não havia regressado do mercado e ela e seus irmãos estavam sozinhos em casa sem saber para onde ir. Tudo o que lhes restava era a longa e sufocante espera: “I am the middle one, the girl, and my little brother [...] All night my first-born brother kept in his hand a broken piece of wood from one of our burnt house-poles. It was to save himself if the bandits found him

A figura feminina é o que impulsiona a narrativa e emociona o leitor. Devido a guerra, os homens são forçados a deixar as suas famílias e cabe as mulheres a difícil escolha de se abater ou resistir e lutar por seus entes queridos. Nenhum dos personagens possui um nome assim como um lugar para chamar de seu, os conhecemos apenas como a mãe, a avó, as outras mulheres. Ao sair de casa e arriscar-se a mãe poderia ser Marta, Virginia ou Joana entretanto isso não é relevante. Seus filhos estavam com fome e não havia nada para comer:  ela não os deixou por motivos egoístas ou para fugir mas porque não tinha escolha. Se ficasse, todos morreriam de fome e se deixasse a vila poderia encontrar com a guerrilha. Infelizmente o paradeiro dela é desconhecido e a figura da avó assume a liderança da família.

A matriarca deve pensar nos próximos passos e carregar consigo a dor da decisão de deixar seu companheiro de uma vida inteira para trás pelo bem de seus netos. Quando não como há como voltar, seguir em frente é tudo o que resta para a pobre senhora. Ela e as outras mulheres carregam as crianças pequenas debaixo de um sol escaldante, com sede, fome, bolhas nos pés por uma travessia sem fim e extremamente perigosa. O cenário era de medo, moscas rastejavam em seu rosto e apesar do cansaço não havia lamentações por parte dela. Ela sobreviveu e com o pouco dinheiro que conseguiu, cuidou para que seus netos tivessem acesso ao mínimo de educação possível naquele lugar há tanto sem esperança.

O Kruger Park e a maior área de conservação da vida animal da África do Sul, cobrindo uma vasto território faz fronteira com Moçambique. A narradora o descreve como um “país inteiro de animais” onde, como entre os seres humanos, a vida deveria ser respeitada e preservada. Assim como os “bandidos” e a própria polícia moçambicana mataram os elefantes, venderam suas presas e comeram sua carne, os civis são perseguidos, caçados, humilhados, torturados e massacrados.

A travessia pela reserva demonstra a real condição dos refugiados: como animais devem ser silenciosos e prudentes para passarem desapercebidos por entre as folhagens pois caçadores os espreitam. A angustiante perseguição não segue em pé de igualdade com os animais da reserva pois os elefantes, chacais, hienas, hipopótamos e crocodilos não são abatidos por sua própria espécie. Uma girafa não teme outra girafa; uma ave não foge de outra ave porém um refugiado amedrontado esquiva dos guardas florestais, dos acampamentos de turistas brancos e dos rebeldes da guerrilha além das forças policiais que deveriam protegê-los e não perseguí-los. 

Dentre os animais da reserva nenhum impressiona mais do que o Leão africano. O leão é um símbolo de soberania, poder, justiça e proteção. A pequena garota diz “I wanted to lie down like the lions” pois mesmo quando dormem, estes animais de figura imponente descasam sem demonstrar cautela ou medo do mundo a sua volta.

Para os refugiados, dormir profundamente é um privilégio que eles não podem ter pois assim como os leões da reserva, os homens poderosos e impiedosos que comandam seu país estão ofegantes à espera para se alimentar do desespero dos inocentes roubando suas casas, matando suas mulheres e crianças e escravizando o que resta do seu povo. 

Para muitos moçambicanos os campos de refugiados são o único lugar onde poderão encontrar paz e segurança após deixarem sua terra natal. Nas tendas onde as famílias ficam abrigadas, a protagonista e sua família receberam ajuda de moradores de um vilarejo próximo, comida e assistência médica de voluntários.

Um grupo de jornalistas vai até o campo com a intenção de fazer um documentário sobre a vida dos refugiados. Uma jornalista pergunta para a avó da garotinha há quanto tempo eles tem vivido ali e quais são seus planos para o futuro. Para a pobre senhora não há “futuro” e muito menos a intenção de retornar para Moçambique algum dia. A narradora não compartilha dos planos de sua avó pois deseja retornar para casa e após a guerra, reencontrar sua mãe e seu avô. Apesar do leitor desejar que o reencontro da garotinha com seus familiares ocorra algum dia, este desejo ficará em sua imaginação pois a realidade deste povo é muito mais cruel que o sonho feliz de uma menina. 

A narrativa de Nadine Gordimer pode ser relacionada com a história de Terra Sonâmbula do escritor moçambicano Mia Couto. Apesar do romance não ser narrado por uma figura feminina e sim por um menino chamado Muidinga, o plano de fundo é a Guerra Civil que assola Moçambique e suas consequência sobre a população desamparada. Assim para os que deixaram tudo para trás em The Ultimate Safari, os sobreviventes do pós-guerra que não buscaram asilo procuram reconstruir suas vidas a partir do pouco ou quase nada que restou de uma terra perdida e sem horizonte. Não havia cor no céu ou leveza no ar, apenas poeira e morte do que restou na longa estrada:

Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte.
                                                                                                      (COUTO, 1992, p. 1)

Outras formas de narrativa ficcional, além da literatura, buscam denunciar por meio da dramatização  os longos e sangrentos conflitos internos que assombram há muito o continente africano. No filme Lágrimas do Sol produzido em 2003, a Nigéria também é atingida pela guerra civil. O governo oficial do país é deposto e milícias organizadas iniciam uma limpeza ética por todo território. Vários grupos de diferentes etnias são eliminados, forçando os sobreviventes a se refugiarem em Camarões. A produção Diamante de Sangue de 2006, ambientado durante a Guerra Civil de Serra Leoa, fala das atrocidades sofridas pelo já miserável e faminto povo leonês agora, escravizado na extração ilegal de diamantes. O país vizinho, a Guiné, é o principal ponto de fuga recebendo por volta de 600.000 refugiados.

O tema recorrente da violência e miséria na África trás consigo questionamentos sobre este cenário perturbador. Quando mulheres debilitadas e crianças famintas fogem de suas casas no meio da noite apenas poderão contar com ajuda humanitária para obter água e comida mas esta, não pode intervir em questões políticas e territoriais que estão além do seu controle. O ódio racial e a xenofobia são alimentados pelo sistema onde a desigualdade educacional gera os elevados índices de analfabetismo reforçando estereótipos e a subordinação dos menos afortunados pelos homens poderosos. Através da literatura, Nadine Gordimer usou a arte da palavra para expor seu sentimento de angústia pelo sofrimento perpetrado ao povo africano. Que através de sua obra a humanidade possa refletir e mudar sua posição diante da realidade que nos cerca.

Referências Bibliográficas

Menna, Lígia Regina Maximo Cavalari. Literatura portuguesa: prosa. São Paulo: Editora Sol, 2012

Nadine Gordimer - Wikipedia, the free encyclopedia. Disponível em < https://en.wikipedia.org/wiki/Nadine_Gordimer> Acesso em 20/11/2015 às 09:12h

Nadine Gordimer/ The Ultimate Safari | PEN American Center. Disponível em < http://www.pen.org/book/nadine-gordimer-the-ultimate-safari> Acesso em 20/11/2015 às 12:58h

The Ultimate Safari. Disponível em <http://newint.org/books/fiction/caine%20prize%2010%20years%20chapter%20one.pdf> Acesso em 14/11/2015 às 12:15h

2 comentários:

  1. quem entrevista o narrador? o que ela pergunta? qual a diferença entre a resposta da avó e o desejo da narradora? esse desejo torna se realidade?

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  2. Por favor, onde posso encontrar o livro?

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