Nadine Gordimer |
Desde muito jovem, a escritora sul-africana Nadine Gordimer demonstrou
interesse na luta contra a desigualdade econômica e social que afligia seu
país. Filha de um pai refugiado da Rússia czarista e de uma mãe ativista,
Gordimer buscou denunciar em suas obras a situação de pobreza e discriminação
enfrentada pelos negros na África do Sul. Sofreu duras repressões do governo e
entrou para a chamada lista negra de escritores anti-apartheid. Mesmo após o
fim do regime de segregação racial, parte de seu trabalho continuava censurado devido
a conteúdo considerado “subversivo” e “unilateral”.
Sua participação em manifestações contra o Apartheid ganhou força não
somente em suas viagens ao redor do mundo onde foi porta voz dos perseguidos
pela repressão política como também, por meio de suas obras que resistiram a
censura e promoveram a literatura sul-africana a um patamar internacional. Com
mais de 30 livros, Gordimer lutou pela liberdade de expressão para que aqueles
que “não tem voz”, pudessem ser ouvidos.
Quando escreveu The Ultimate
Safari, Gordimer estava extremamente compadecida pela situação dos refugiados
na África do Sul. Moçambique sofreu 14 anos com a Guerra Civil entre as forças
do então governo do presidente Samora Machel, e a Resistência Nacional
Moçambicana (RENAMO). Além dos ataques indiscriminados aos civis pelos
rebeldes, a situação violenta do país se agravou ainda mais pelo colapso
econômico, falta de serviços médicos durante anos e a fome que se alastrara por
quase todo o território. Ferido e faminto, o povo moçambicano buscou refúgio em
países vizinhos e, entre eles, a África do Sul. Em sua obra, Gordimer retrata a
história desta comunidade invisível que aos olhos de muitos não pode ser
considerada uma comunidade de fato pois, não tem um lugar: os refugiados. Seja
pelos horrores da guerra, conflitos religiosos ou econômicos, a África do Sul
recebeu centenas destes refugiados que procuravam asilo, emprego e moradia
abalando a também caótica situação pelo qual passava o país que os acolheria.
Narrada em primeira pessoa, a história é contada por uma garotinha sem
nome de 11 anos. Sabemos que ela é a irmã do meio ao se referir sobre seu irmão
mais velho e seu irmão mais novo, ainda muito pequeno. No segundo parágrafo a
garotinha descreve o medo que sentiu a noite pois sua mãe não havia regressado
do mercado e ela e seus irmãos estavam sozinhos em casa sem saber para onde ir.
Tudo o que lhes restava era a longa e sufocante espera: “I am the middle one, the girl, and my little brother [...] All night my
first-born brother kept in his hand a broken piece of wood from one of our
burnt house-poles. It was to save himself if the bandits found him”
A figura feminina é o que impulsiona a narrativa e emociona o leitor. Devido
a guerra, os homens são forçados a deixar as suas famílias e cabe as mulheres a
difícil escolha de se abater ou resistir e lutar por seus entes queridos. Nenhum
dos personagens possui um nome assim como um lugar para chamar de seu, os
conhecemos apenas como a mãe, a avó, as outras mulheres. Ao sair de casa e
arriscar-se a mãe poderia ser Marta, Virginia ou Joana entretanto isso não é
relevante. Seus filhos estavam com fome e não havia nada para comer: ela não os deixou por motivos egoístas ou
para fugir mas porque não tinha escolha. Se ficasse, todos morreriam de fome e
se deixasse a vila poderia encontrar com a guerrilha. Infelizmente o paradeiro
dela é desconhecido e a figura da avó assume a liderança da família.
A matriarca deve pensar nos próximos passos e carregar consigo a dor da
decisão de deixar seu companheiro de uma vida inteira para trás pelo bem de
seus netos. Quando não como há como voltar, seguir em frente é tudo o que resta
para a pobre senhora. Ela e as outras mulheres carregam as crianças pequenas
debaixo de um sol escaldante, com sede, fome, bolhas nos pés por uma travessia sem
fim e extremamente perigosa. O cenário era de medo, moscas rastejavam em seu rosto
e apesar do cansaço não havia lamentações por parte dela. Ela sobreviveu e com
o pouco dinheiro que conseguiu, cuidou para que seus netos tivessem acesso ao
mínimo de educação possível naquele lugar há tanto sem esperança.
O Kruger Park e a maior área
de conservação da vida animal da África do Sul, cobrindo uma vasto território
faz fronteira com Moçambique. A narradora o descreve como um “país inteiro de
animais” onde, como entre os seres humanos, a vida deveria ser respeitada e
preservada. Assim como os “bandidos” e a própria polícia moçambicana mataram os
elefantes, venderam suas presas e comeram sua carne, os civis são perseguidos,
caçados, humilhados, torturados e massacrados.
A travessia pela reserva demonstra a real condição dos refugiados: como
animais devem ser silenciosos e prudentes para passarem desapercebidos por
entre as folhagens pois caçadores os espreitam. A angustiante perseguição não
segue em pé de igualdade com os animais da reserva pois os elefantes, chacais,
hienas, hipopótamos e crocodilos não são abatidos por sua própria espécie. Uma
girafa não teme outra girafa; uma ave não foge de outra ave porém um refugiado
amedrontado esquiva dos guardas florestais, dos acampamentos de turistas
brancos e dos rebeldes da guerrilha além das forças policiais que deveriam
protegê-los e não perseguí-los.
Dentre os animais da reserva nenhum impressiona mais do que o Leão
africano. O leão é um símbolo de soberania, poder, justiça e proteção. A
pequena garota diz “I wanted to lie down
like the lions” pois mesmo quando dormem, estes animais de figura imponente
descasam sem demonstrar cautela ou medo do mundo a sua volta.
Para os refugiados, dormir profundamente é um privilégio que eles não
podem ter pois assim como os leões da reserva, os homens poderosos e impiedosos
que comandam seu país estão ofegantes à espera para se alimentar do desespero
dos inocentes roubando suas casas, matando suas mulheres e crianças e
escravizando o que resta do seu povo.
Para muitos moçambicanos os campos de refugiados são o único lugar onde
poderão encontrar paz e segurança após deixarem sua terra natal. Nas tendas
onde as famílias ficam abrigadas, a protagonista e sua família receberam ajuda
de moradores de um vilarejo próximo, comida e assistência médica de
voluntários.
Um grupo de jornalistas vai até o campo com a intenção de fazer um
documentário sobre a vida dos refugiados. Uma jornalista pergunta para a avó da
garotinha há quanto tempo eles tem vivido ali e quais são seus planos para o
futuro. Para a pobre senhora não há “futuro” e muito menos a intenção de
retornar para Moçambique algum dia. A narradora não compartilha dos planos de
sua avó pois deseja retornar para casa e após a guerra, reencontrar sua mãe e
seu avô. Apesar do leitor desejar que o reencontro da garotinha com seus
familiares ocorra algum dia, este desejo ficará em sua imaginação pois a
realidade deste povo é muito mais cruel que o sonho feliz de uma menina.
A narrativa de Nadine Gordimer pode ser relacionada com a história de Terra Sonâmbula do escritor moçambicano
Mia Couto. Apesar do romance não ser narrado por uma figura feminina e sim por
um menino chamado Muidinga, o plano de fundo é a Guerra Civil que assola
Moçambique e suas consequência sobre a população desamparada. Assim para os que
deixaram tudo para trás em The Ultimate
Safari, os sobreviventes do pós-guerra que não buscaram asilo procuram
reconstruir suas vidas a partir do pouco ou quase nada que restou de uma terra
perdida e sem horizonte. Não havia cor no céu ou leveza no ar, apenas poeira e
morte do que restou na longa estrada:
Naquele
lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se
arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de
tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão
sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas
pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao
chão, em resignada aprendizagem da morte.
(COUTO,
1992, p. 1)
Outras formas de narrativa ficcional, além da literatura, buscam
denunciar por meio da dramatização os longos
e sangrentos conflitos internos que assombram há muito o continente africano. No
filme Lágrimas do Sol produzido em
2003, a Nigéria também é atingida pela guerra civil. O governo oficial do país
é deposto e milícias organizadas iniciam uma limpeza ética por todo território.
Vários grupos de diferentes etnias são eliminados, forçando os sobreviventes a
se refugiarem em Camarões. A produção Diamante
de Sangue de 2006, ambientado durante a Guerra Civil de Serra Leoa, fala
das atrocidades sofridas pelo já miserável e faminto povo leonês agora,
escravizado na extração ilegal de diamantes. O país vizinho, a Guiné, é o
principal ponto de fuga recebendo por volta de 600.000 refugiados.
O tema recorrente da violência e miséria na África trás consigo questionamentos
sobre este cenário perturbador. Quando mulheres debilitadas e crianças famintas
fogem de suas casas no meio da noite apenas poderão contar com ajuda
humanitária para obter água e comida mas esta, não pode intervir em questões
políticas e territoriais que estão além do seu controle. O ódio racial e a
xenofobia são alimentados pelo sistema onde a desigualdade educacional gera os
elevados índices de analfabetismo reforçando estereótipos e a subordinação dos
menos afortunados pelos homens poderosos. Através da literatura, Nadine
Gordimer usou a arte da palavra para expor seu sentimento de angústia pelo
sofrimento perpetrado ao povo africano. Que através de sua obra a humanidade
possa refletir e mudar sua posição diante da realidade que nos cerca.
Referências Bibliográficas
Menna, Lígia Regina Maximo Cavalari. Literatura
portuguesa: prosa. São Paulo: Editora Sol, 2012
Nadine Gordimer - Wikipedia,
the free encyclopedia. Disponível em <
https://en.wikipedia.org/wiki/Nadine_Gordimer> Acesso em 20/11/2015 às
09:12h
Nadine Gordimer/ The
Ultimate Safari | PEN American Center. Disponível em
< http://www.pen.org/book/nadine-gordimer-the-ultimate-safari> Acesso em
20/11/2015 às 12:58h
The Ultimate Safari. Disponível em <http://newint.org/books/fiction/caine%20prize%2010%20years%20chapter%20one.pdf>
Acesso em 14/11/2015 às 12:15h
quem entrevista o narrador? o que ela pergunta? qual a diferença entre a resposta da avó e o desejo da narradora? esse desejo torna se realidade?
ResponderExcluirPor favor, onde posso encontrar o livro?
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